Quando o mundo cai por terra, os livros ajudam-nos a ficar de pé, como alguém que nos segura a mão do outro lado do mundo.
Na
caixa de correio encontra-se uma embalagem de cartão retangular que contém um
livro de capa dura, gasta, lombada vincada, páginas dobradas. Não é o primeiro
que recebo nestas lastimáveis condições– cheiro-o e já o adoro.
Encomendar
livros tornou-se num hábito recente. Nunca sei como vêm. Se a capa vai estar
intacta, se terá uma página rasgada, é sempre uma surpresa. Já tinha comprado
em segunda mão antes, ao passear pelas ruas de Lisboa, mas os tempos atuais são
de confinamento e somos obrigados à escolha online. Poder encomendar de
qualquer canto do mundo traz um entusiasmo completamente novo. Para
contrabalançar o preço dos portes, decidi comprar os livros considerados em
“piores condições”. Assim que chegou o primeiro,
apercebi-me que esse julgamento era muito mal feito.
Existem
outros amantes de livros que podem discordar, dizer que é uma absoluta
blasfémia dobrar e escrever em livros, deixar que se sujem, tirá-los de casa e
lê-los na praia onde se enchem de areia. É essa discordância que separa os
colecionadores dos leitores: ambos são amantes de livros, mas um quer o livro
pelo livro e o outro, o livro pela história.
Quando
se compra um livro já lido e relido, compram-se duas histórias. Claro, qualquer
uma precisa de um tÃtulo. A que seguro nas minhas mãos neste momento chama-se Stephanie
Garcia.
A Stephanie vive ou viveu no Arizona e a sua cor favorita é roxo, ou era, quando tinha
catorze anos e fazia corações nos pontos dos i e chavetas muito encaracoladas.
Levava o livro na mala da escola, e num
raro dia de chuva, ele molhou-se e ficou para sempre com as páginas onduladas.
Hoje,
tem 25 anos. Os amigos chamam-lhe Steph e é florista. Já sabe todas as plantas
de cor, de tanto que as sublinhou com o marcador
lilás. Então, deixou de precisar de uma obra tão
básica e pô-la à venda num site de
livros em segunda mão. Com a quarentena, deixou de poder trabalhar na sua loja
local e precisava de mais dinheiro para pagar a renda do pequeno apartamento
onde vive com o seu gato. Tem um jardim caseiro de ervas aromáticas no
parapeito e olha para elas enquanto pratica desenho. Pelos rabiscos de plantas
à margem das páginas, ainda tem muito que aprender.
…Ou
não. Steph aprendeu desenho cientÃfico no curso de Biologia e hoje trabalha numa empresa que pesquisa formas mais
eficientes de hibridizar plantas para o benefÃcio humano. Foi para o curso
porque queria um trabalho em que pudesse fazer do seu amor por plantas algo
rentável. Quando tira a bata branca e luvas, volta para sua casa, lado a lado a
casas exatamente iguais. O seu namorado está já na cozinha a fazer o jantar,
enquanto um labrador retriever lhe salta para as pernas. Ela senta-se no sofá e
suspira com um sorriso.
Ou …se
calhar Steph nem se lembra de gostar de botânica quando era mais nova. Os
colegas eram cruéis como são os jovens de 14 anos, não percebiam porque gostava de plantas e sob a pressão, ela desistiu.
As
anotações param a meio do livro.
Steph
mudou-se para Nova Iorque e arranjou trabalho num escritório, deixando as suas
plantas no quarto de criança juntamente com um livro que não era comum ser lido
aos 14 anos. Um dia, a mãe encontrou-o ao
renovar o quarto e vendeu-o.
…Ou ela
simplesmente não gostou do livro.
Numa
página, a Steph sublinhou a palavra “lua” quatro vezes a lápis. Deixou-me uma
receita de chá de lavanda e camomila - deve gostar dele com mel. Fez uma
chaveta na página que fala das propriedades naturais do mel. Quero acreditar que
bebe a chávena de chá comigo, no outro lado do mundo.
Na
verdade, penso que Steph já tinha aprendido tudo o que tinha a aprender com
este livro quando o passou à próxima pessoa que
quisesse aprender com ele. Todos nós gostamos de passar o nosso conhecimento aos
outros. Se não quisesse que eu aprendesse com as notas dela, tinha-as apagado. Também
deveria passar o livro para a próxima pessoa que o quiser, com as minhas
próprias notas.
Pergunto-me
o que aconteceria. Podiam pensar que era uma médica, com a minha letra
rabiscada e ilegÃvel. Misturar-me-iam com Steph numa só pessoa? Será que eu
estou a misturar a Steph com alguém? Se calhar a Steph não é so Stephanie, é Steph, é Rita, é Charlie, é Josh, é Thomas, é
Abdul, é Lili, é Eugénia, é Francis, é Daniel, é Gina, é Hugh, é Iris, é Keira,
é Maria, é Nyombi, é Oscar, é Pauline, é Quentin, é Uza, é Vanya, é Will, é Yoo-ji,
é Zira, e olho para todos nós entre o papel vindo das árvores e a tinta que
inventámos no inÃcio dos tempos, todos em casa, a olhar para as páginas e
esperar que nos deem uma resposta, um conforto neste tempo de tragédia.
Se
calhar (e só se calhar), somos todos livros, com a capa rasgada, coluna
dobrada, páginas molhadas e passagens escrevinhadas – e adoro-nos.
Adoro as tuas crónicas. Devia de escrever mais este género jornalistico.
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