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Crítica de Bruxa - O Grande Livro de São Cipriano

dez. 13, 2024 0 comments

 

O famoso de capa preta. O feiticeiro do Diabo. O grande livro de magia. São essas algumas das frases associadas a este livro envolto em mistério - um livro que assusta muitos e enche outros de curiosidade. Não tem um título, por assim dizer, porque é si é difícil de descrever. É simplesmente O Livro de São Cipriano. 

Reza a lenda que quem lê o livro do feiticeiro São Cipriano, será possuído pelo Diabo e levado à loucura. Quem o quer ler sem ser afetado, terá de o fazer de trás para a frente - a fazer o pino num monte com uma laranjeira, já agora. A ironia de conseguirmos comprar um livro coberto de lendas de maldições e loucura em todas as livrarias não é algo que me escapa. Como pagã e bruxa, muitos leitores provavelmente esperam que estas superstições façam sentido na minha cabeça - afinal, se falo de assuntos como magia, por que não acreditar que um livro é amaldiçoado? No entanto, no que toca ao Livro de São Cipriano, é exatamente por ser pagã e bruxa que tenho este ceticismo - porque sei que o porquê da ideia da maldição deste livro tem uma função muito específica, que me afeta a mim e a pessoas que partilham do meu caminho espiritual. 

Esta crítica será um pouco diferente, pois não seria justo, ou transparente, estar a criticar um livro que faz parte da tradição popular, alterado pelos anos dependente da edição. Nesta Crítica de Bruxa, vamos pensar criticamente sobre este livro, e tentar perceber a sua importância e onde o encaixar na nossa prática. 

Para quem desconhece a história do Livro de São Cipriano, esta está no próprio livro em grande parte das edições - para referência, neste artigo estamos a consultar a edição da editora Nascente, que é a mais fácil de adquirir em Portugal. Segundo o próprio livro, Cipriano seria um feiticeiro de Antioquia, que nasce para pais pagãos e é educado nas artes sacerdotais pagãs - através das quais passa a "servir o Diabo" e fazer "magia negra". Viaja a cumprir vários serviços - alguns tão simples como proteções ou magia para sorte, outros de morais mais questionáveis, como amarrações e pragas. Num desses serviços, encontra uma jovem pela qual se apaixona, Justina, que resiste às suas amarrações. Justina é devota de Deus, e reza cada vez que Cipriano tenta fazer magia na direção dela. Admirado com o poder que Deus tem, maior que a sua magia, Cipriano converte-se ao Cristianismo por Justina, ficando uma de muitas histórias de Santos convertidos ou fieis à sua crença. Se seguirmos esta história, Cipriano é, na verdade, um símbolo contra a bruxaria, várias rezas até (tanto encontradas dentro e fora do livro) reforçando esta ideia como protetor contra a bruxaria. De onde vem então todo o medo a esta figura? Porque é ele ainda considerado um bruxo herético?

Pânico Satânico

Não precisamos de ir muitas gerações atrás para ouvirmos acerca do mítico livro. De uma perspectiva Gen Z, grande parte dos pais dita o medo do livro e o rumor da possessão por Satanás a quem o lê, avós contam de pessoas que têm o livro à entrada da sua casa para oferecer serviços de bruxaria, ou até tinham cópias eles mesmos. Ouvimos histórias de pessoas que chegam a queimar as cópias do livro de membros de família devido ao medo à volta dele - do medo que abra a porta a Satanás e que ele infete a família com a sua maldade. 

De certo que os leitores pagãos e ateus devem estar a revirar os olhos, já a reconhecer toda esta narrativa. A criação do medo à volta de um livro ou crença tem sempre um objetivo por detrás - e raramente é por preocupação pela pessoa a quem incutimos o medo. Isto pode ser feito de forma inconsciente claro, pois pessoas com medo colocam esse medo àqueles à sua volta. Para os leitores que ainda têm esse medo ou que estão no processo de o desconstruir, apresentamos o conceito de Pânico Satânico.

Este é um conceito de vem dos Estados Unidos da América, em que todo este medo de Satanás foi amplificado por rumores de rituais satânicos mórbidos. Tudo aquilo que não era cristão, ou não cabia no que a Igreja institucionalizada passava, era Satânico e a ser temido - este é um conceito também aplicado ao paganismo e bruxaria em geral, e até ao ateísmo. Um conceito que, infelizmente, também chega a Portugal. Mas onde é que entra São Cipriano no meio disto tudo? Bem, começa com o facto de, na história, São Cipriano começar como seguidor de Satanás - que funciona como uma espécie de substituto para qualquer Deus pagão. Como seguidor de Satanás, faz todas as ações mágicas consideradas moralmente ambíguas, que manipulam o mundo e pessoas à sua volta. No entanto, é sempre destacado que nunca são mais poderosos que a simples fé ao Deus cristão - o que acaba por criar uma confissão em quem tem este medo do livro de que não têm sequer fé na crença que seguem. Juntamos à história o facto de alguns dos feitiços contidos terem práticas mais chocantes quando olhadas sob um código moral atual, e temos um pânico geral à volta do livro, com rumores de grupos satânicos a utilizá-lo para pactos e sacrifícios e edições que incluem magia sensasionalista adicionados ao pote, para ter a certeza que o medo cozinha bem. 

Ficando compreendido que o Livro de São Cipriano destaca o Deus Cristão como mais poderoso que Satanás, pode continuar a questão naqueles que acreditam na dicotomia de mal vs. bem: Mas e as pessoas que, mesmo assim, utilizam os feitiços de São Cipriano? Que não estão apenas a ler? Para isso, precisamos de, como diz a expressão, "ir à bruxa".

Bruxaria, ou anti-bruxaria?

O Livro de São Cipriano é um livro de bruxaria em vários sentidos - porque a palavra bruxaria tem vários sentidos. Melhor explicado noutro artigo do blogue, de forma sucinta, quando falamos de bruxaria, podemos estar a falar da palavra utilizada para subjugar e discriminar grupos já marginalizados, ou podemos estar a falar das práticas modernas inspiradas por conhecimento popular e Wicca. Este livro é de bruxaria no primeiro sentido da palavra, pois todo o conceito de Cipriano ser bruxo, tal como ser seguidor de Satanás, segue o propósito da narrativa de retratar ambas como algo longe do "bem". Faz até parte da sua história aprender com a Bruxa de Évora, que será a verdadeira detentora deste conhecimento do "mal" - um bode expiatório para permitir fluir melhor a redenção de Cipriano, como muitas pessoas acusadas de bruxaria foram. É um livro de bruxaria também no segundo sentido da palavra, pois é um livro que alguns praticantes adaptam para a sua prática.

Em grande parte das edições encontramos dois tipos de feitiços atribuídos a São Cipriano: os que lidam com manipular ou castigar alguém (normalmente considerados magia negra), que seriam da bruxaria praticada antes da redenção; e os que lidam com purificações e banimentos, acompanhados de preces a santos. A dicotomia magia branca vs. magia negra é uma que também deve ser descontruída (pois, se não somos completamente bons ou maus, a nossa magia também nunca há de ser), mas é trabalho para outro artigo. O interessante de aplicar estes conceitos a Cipriano, é que cria uma divisão de perspectiva acerca do Santo. Por um lado, é um grande e assustador bruxo que manipula aqueles à sua volta, que deve ser temido e levado como um mau exemplo. Por outro, é um símbolo anti-bruxaria, que conhece todas as práticas e como as desfazer, e utiliza os seus conhecimentos para propósitos de acordo com a sua fé.  

Fora do livro de São Cipriano, existem preces que o invocam para desfazer bruxaria, tal como existem para dar mais poder à mesma. Não devemos olhar para esta figura como apenas símbolo da magia cristã ou apenas símbolo da bruxaria, mas sim como os dois. Cipriano é tanto bruxo, como desfaz bruxaria - e práticas do livro tanto pré-redenção como pós-redenção são utilizadas na magia popular.

A lenda na prática

Para quem quer aplicar a magia de São Cipriano ao seu caminho, existem várias perspectivas que conseguimos tomar. Para quem tem ainda alguma aversão a ler o dito livro - que é normal, pois desconstruir o medo que nos foi incutido é todo um processo - pode começar por trabalho ancestral com Cipriano. Aqui podemos, ou não, incluir o livro em si, pois o foco é Cipriano como figura. Refletir no que simboliza São Cipriano e ter um espaço para ele na nossa casa, construindo uma relação de comunicação e respeito para descobrir as suas diversas facetas - não muito diferente do que se faria com um ancestral de família direta, um ser mágico ou uma divindade. Isto ajuda a construir a nossa visão de Cipriano e como ele pode contribuir para a nossa prática, bem como ajudar a decidir se queremos mesmo ler o livro. 

Com a decisão de ler o livro e medo do mesmo largado, existem várias maneiras de o utilizar. É recomendado obter várias edições, pois algumas têm mais feitiços e dicas que outras. Podemos utilizar como um "livro de receitas" e procurar um feitiço para o propósito que precisamos. Temos também muitas dicas de divinação com cartas - a divinação com cartas de jogo é especialmente interessante - leitura de palmas e de sonhos, bem como dicas de materiais mágicos a utilizar. Alguns materiais destacados são: alecrim; favas; feto; trevos; uvas; ovos; malvas; flor de laranjeira; e outros. Temos claro, a questão da magia que utiliza animais - que é objetivamente errada e cruel quando os magoa - mas que pode ser adaptada de forma figurativa, por exemplo, em vez de utilizar o animal de forma literal, utilizar uma estátua que simbolize o animal. Até as magias manipulativas, que causam desconforto ou dor, podem ser adaptadas para situações em que a justiça social nos falha - mas isso é algo que já fica ao critério do código moral do leitor.

Temos também a parte das orações. Para um praticante cristão, ou até de vertentes seculares, as preces podem ser levadas assim como estão escritas. Muitos pagãos ficam reticentes acerca das mesmas por invocarem o Deus cristão, Jesus e Santos. Aqui, podemos fazer as nossas próprias preces para o mesmo propósito seguindo a mesma formula daquela sugerida, ou simplesmente fazer um trabalho de substituição. É extremamente fácil pesquisar a função de um Santo e encontrar uma divindade pagã que caiba na mesma função. Quando à palavra "Deus" e "Nosso Senhor", é uma questão de intenção: maior parte dos politeísmos têm um "Deus Pai" que cabe nesta descrição. Basta pensar nesse Deus, e não no Deus cristão (o mesmo se aplica a "Nossa Senhora"). Todas as preces precisaram de ser inventadas a certo ponto, nada nos diz que não as podemos reinventar.

Em conclusão, para quem quer começar o caminho da prática popular, este é um livro indispensável. Toda a mitologia popular na península ibérica à volta da bruxaria leva a São Cipriano. Não podemos dizer praticar magia ibérica e ignorar a sua presença. Este livro, mesmo depois de edição e reedição, é um símbolo da tradição mágica, e apenas lendo, sem medos, é que o podemos redefinir e reinventar.

Ouve mais no meu canal do Youtube:


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