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Levem as abóboras, deixem as flores - Elizabeth Krebs, a mãe do Halloween

out. 28, 2020 0 comments

 


O seguinte conto é uma versão romantizada dos acontecimentos de Hiawatha, Kansas, em 1914, em que uma mulher - Elizabeth Krebs - mudou a forma como celebramos o Halloween para sempre.

1 de novembro. A mistura de lavanda e lúcia-lima enche a cozinha com um aroma vindo de sonhos. Elizabeth deixa cair um cubo de açúcar no chá quente e mexe-o com a sua colher, a chávena floral tilintando. Suspira. Todos os seus dias começavam assim, com pleno relaxamento. Afinal, não tinha de se preocupar com nada na pequena cidade de Hiawatha, Kansas. Nada, a não ser o seu clube de jardinagem, do qual era presidente. Iam reunir-se hoje às três da tarde. 

Pensa colher uma das suas dálias para mostrar às companheiras. Já devem estar com uma cor vibrante e vistosa, pronta a ser colhida. Dirige-se ao armário de madeira clara no seu quarto, coloca umas meias amarelas até ao joelho com pequenos cravos bordados e o corpete por cima da longa camisa na qual dormira. Acaba de abotoar o seu saiote quando, pela janela, vê, de relance, o seu maior pesadelo. Agarra no resto das suas muitas camadas de roupa e veste-as todas de uma vez, descendo as escadas a correr. Coloca o seu chapéu lilás com um lenço verde a atar camélias rosa, abre a porta de rompante e lá estava: um monte de terra, ervas e pétalas caídas onde antes florescia o seu jardim.

Leva as mãos à cabeça e faz o seu melhor para manter a compostura esperada de uma senhora da sua idade. No outro lado da estrada, foge um bando de rufias a rir-se da polícia. Reconhece os cabelos pétalas de girassóis secos, sujos e despenteados debaixo de uma boina castanha. É o pequeno Bertie. Ainda tem a mesma cara de quando era bebé, mas agora com um cigarro entre os dentes. Corre mais rápido que o resto do seu bando. Elizabeth caminha calmamente na sua direção segurando o seu chapéu berrante. 

Quando chega ao monte de placas de madeira empilhadas numa forma que se assemelha a uma casa escondida atrás das árvores, o polícia já desistiu, e os rapazes gargalham alto enquanto contam uns aos outros os feitos da noite anterior. A jardineira empina o nariz e bate com o salto da bota preta numa das placas que cai com um estrondo. Bertie grita e os seus amigos riem dele.

- Pequeno Bertie...Vem cá seu berbere!

Elizabeth arrasta o rapaz pela orelha queimada pelo sol enquanto os outros jovens fazem um falsetto e gozam, "Pequeno Bertie!". Estão a poucos metros das placas de madeira quando ela lhe larga a orelha.

- Credo, mulher, para que é que foi preciso isto! E é Wilbert, não Bertie.

- Bertie, como te atreves a destruir o meu jardim com os teus amigos degenerados! No Dia-de-Todos-os-Santos ainda por cima!

- Wilbert. Não sabia que agora és cristã dedicada — o rapaz cospe — Não destruimos as tuas florzinhas no Dia-de-Todos-os-Santos. Foi na noite anterior, o Dia-de-Todos-os-Diabos.

- Isso não existe, Bertie.

- Claro que existe! O Rich leu num livro de história, os malucos pagãos faziam festas com fogueiras e matavam animais todos vestidos de diabos, nós só queríamos continuar a tradição, até tens sorte que não queimamos as tuas florzinhas.

- Bertie... - Elizabeth olha para o menino armado em adulto à sua frente com olhos que metem juízo a qualquer criança. O jovem tenta fazer-lhe frente com as mãos a tremelicar e vira costas. Volta para os seus amigos.

Olha para os jovens a receber Bertie com palmadas nas costas e risadas. Suspira. Não são maus miúdos. Estão aborrecidos. No Kansas há hectares de trigo e nada para fazer. Nem todos tinham o privilégio de ter um grande clube de jardinagem como ela.

Tinha de fazer alguma coisa.

Chega à sua casa branca, as suas parceiras de jardinagem já á espera na porta, cada uma com um chapéu mais colorido. 

- Elizabeth! O que te aconteceu? Estás horrível.

Elizabeth nota que a sua saia tinha terra e o seu cabelo caía do seu chapéu. Não tinha tido tempo para o atar.

- Uma afronta, minha cara. Uma desrespeitosa afronta.

Abre a porta e todas entram em fila atrás dela. Faz um chá de peônia enquanto as amigas se sentam nas muitas poltronas e sofás na sua sala de estar. Serve o chá e senta-se na grande poltrona verde do centro da sala. 

- Ontem à noite uns rufias vandalizaram o quarteirão...incluindo o meu jardim.

Instalou-se o caos. Nunca a pequena cidade tinha ouvido tanto barulho a vir daquela casa. Velhinhas gritavam, choravam, planeavam a morte de quem tinha feito tal crueldade. Elizabeth Krebs era a única que silenciosamente bebia o seu chá. Bateu com a pequena colher de prata na borda da chávena. Todas se sentaram sincronizadamente e olharam para ela.

- São meninos. Cuidei de um deles quando era apenas bebé. Deu-me a entender que fizeram devido a uma tradição antiga que interpretaram mal. Estão aborrecidos, aproveitam qualquer oportunidade para fazer a vida mais interessante - bebe um golo de chá - Vamos fazer uma festa.

Ficam boquiabertas. Uma delas chega até a pousar a chávena. A sua líder aproxima-se e sussurra, como se a planear dominação mundial.

- Se eles estiverem cansados, não conseguem destruir as minhas flores. Só precisamos de fazer uma boa festa para o ano para garantir que ficam entretidos.

- Elizabeth, celebrar antes do All Saints Day? Não pensas que isso pode ser um pouco…

- Vamos celebrar a véspera do dia, All Hallows Eve. Ninguém se vai importar, todos tiveram os seus quintais destruídos.

Abanam todas as cabeças em concordância. Os próximos 11 meses passam com esta ideia completamente esquecida. É setembro do ano seguinte e Elizabeth está a regar as suas dálias. Relembra-se. Acaba de regar as suas queridas flores e corre para dentro de casa, agarrando num papel e caneta.

Escreve uma proposta de festa para mostrar às suas parceiras. Planeia um grande jantar e jogos para entreter os jovens. Mostra a lista para a festa durante a reunião do clube de jardinagem, e põem mãos à obra. Durante os dois meses preparam as suas melhores receitas, fazem fitas decorativas e arranjos de flores, juntam tudo o necessário para jogos, balões, baldes com maçãs, prémios.

Chega o esperado dia: 31 de outubro. Têm tudo montado na rua, prontas para receber qualquer pessoa que quisesse festejar. Os vizinhos olham pelas janelas. Os rapazes estão a correr à gargalhada, pensando em todas as coisas que vão destruir, até que o cheiro de tartes e frango chega-lhes ao nariz. Veem a mesa montada no meio da rua e param com os olhos espantados. Elizabeth avança na direção deles, mesmo à frente de Bertie. Diz sarcasticamente:

- Mister Wilbert, queriam uma festa, aqui têm uma. 

Puxam as cadeiras para os jovens se sentarem. Comem, bebem. Alguns vizinhos até se juntam a eles. A mesa está decorada com flores brancas e amarelas. Passam a grande parte da noite em pequenos jogos de feira, os rapazes riem e suspiram. A noite é escura e profunda quando acabam todas as atividades e os jovens têm sorrisos simpáticos na cara para todo o clube de jardinagem. As mulheres levam os sorrisos como uma vitória. Voltam todos para as suas casas e adormecem.

1 de novembro. Elizabeth boceja e endireita a sua camisa de dormir. Olha pela janela para admirar o seu belo jardim, mas em vez disso, é acordada pela destruição de todas as suas flores. Grita de frustração. Veste-se rapidamente e dá passos pesados até às árvores onde se escondem os rufiões. 

- Bertie, vem cá imediatamente!

O rapaz encolhe-se e tenta esconder-se atrás dos seus amigos. Elizabeth puxa-o de novo pela orelha e começa a dar-lhe um raspanete, mesmo à frente dos seus amigos. Eles riem-se até que um diz:

- Adorámos a festa Ma’am, foi uma simpatia, mas, decerto compreende que não ficamos satisfeitos com algo tão pacato. Foi uma festa de velhinha.

Festa de velhinha? Festa de velhinha!? Elizabeth não iria admitir tal afronta. Querem uma festa a sério, vão ter uma festa a sério. 

O clube de jardinagem nessa tarde é dedicado a planeamento. Passam os inteiros 11 meses seguintes a trabalhar arduamente para uma grande festa. Estudam a história da celebração que eles usavam como desculpa para vandalizar a cidade. Percebem como se relacionava a espíritos e morte. Se não querem uma festa pacata, vão ter uma festa assustadora. Assustadora, mas divertida. Preparam fatos de monstros, decorações de esqueletos, decorações com folhas e bolotas secas. Contratam pessoas para entretenimento, uma banda inteira, palhaços. Fazem doces com plantas, vegetais e flores do outono, prontos a distribuir pela cidade. Elizabeth olha para todas as preparações em cima da sua mesa e bebe o chá num só gole. Está pronto.

Umas semanas antes da festa, o clube de jardinagem está a distribuir panfletos sobre a festa para toda a cidade ir. Elizabeth Krebs vai dar um panfleto aos rufias ela mesma. O papel é laranja e roxo com desenhos de fantasmas e promessas de diversão. Quando chega, os rapazes começam imediatamente a rir e empurram Bertie para a frente.

- Miss Krebs - cruza os braços, desafiante.

- Bertie. Wilbert. Venho convidá-lo e os seus comparsas para uma festa, dia 31 de outubro, para celebrar All Hallows Eve. Uma boa festa. Não é festa de velhinha.

- Se for como o ano passado não estamos interessados.

- Não te preocupes que não o será. Aliás, vocês vão ter autorização para fazer malandrices. Até falámos com a polícia. 

Os rapazes põem-se todos a ouvir. Um deles interrompe:

- A sério, senhora Krebs?

- Desde que seja dentro das regras no panfleto.

Não diz mais nada. Vira costas. 

Dia 31 à noite, a rua inteira está decorada. Os vizinhos juntaram-se à causa do clube de jardinagem, também fartos das suas casas vandalizadas. As casas estão todas decoradas com lanternas e ornamentos feitos pelo clube, fazendo a cidade ter tons laranjas e sépia. Elizabeth sai da sua casa com um vestido roxo e preto, e chapéu pontiagudo verde. Carrega uma abóbora vazia na qual tinha cortado uma cara, da mesma forma que agricultores fazem nos espantalhos, que pousa ao pé do jardim. Na entrada tem uma grande taça cheia dos mais variados doces. Paga à banda que está à sua porta, pronta para tocar. Coloca-se lado a lado às suas parceiras. Os vizinhos olham pela janela. No fundo da rua, lá estão eles: Bertie e os amigos, todos vestidos de monstrinhos. Bertie tem uma bela capa vermelha e dentes falsos, alguns amigos têm cabeças de veado, casacos de pelo e lençóis na cabeça. Elizabeth dá sinal. A banda começa a tocar. Os rapazes riem e saltitam. Elizabeth pega num saco de batatas bordado com morcegos e abóboras, e dá a Bertie. Torce-lhe o nariz.

- Porta-te bem, pequeno Bertie.

O rapaz tira-lhe a língua de fora, mas sorri. 

Seguem a noite toda pela rua fora, a banda a segui-los. Dançam, bebem, comem, batem porta a porta pedindo "Doçura ou Travessura?". Os vizinhos dão os seus doces feitos pelo clube de jardinagem, alguns até deixando os rapazes fazer as suas travessuras, atirando um ou dois ovos ao telhado da casa. Todos sorriem. Passada a meia-noite, os rapazes já não se veem, e todos haviam voltado para casa. Elizabeth olha para o seu jardim iluminado e sorri, esperançosa que assim se mantenha na manhã.

1 de novembro. Elizabeth olha pela janela. O seu jardim está intacto. Dá uma pirueta de felicidade. Finalmente, passa a sua manhã relaxada. Quando sai de casa, repara: o seu jardim está intacto, mas a abóbora que tinha colocado ao lado do jardim fora roubada. Antes a abóbora que as flores. 


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