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Tranças e Sinos - Conto - Dia de Fataí

ago. 28, 2024 1 comments

 

Nos nossos piores momentos, a luz sempre há de nos trazer de volta. 

Foram essas as palavras proferidas pelas Irmãs no dia em que tive coragem para confessar os meus sentimentos. Nestas paredes frias, romance não é permitido. Nunca poderia ser. O Colégio Graça de Deus só permitia um amor, e não era aquele que eu sentia. Que sinto ainda agora. As Irmãs acolheram-me, ensinaram-me tudo o que sabem - disseram que um dia, podia vir a ser como elas, que Deus me tinha colocado no seu caminho por uma razão. Porque me queria ao pé Dele. 


Só esse amor é permitido. Só existia um amor. Até aquele momento. O momento em que uma força maior do que eu, que me empurrou para perto dela. Quando lábios suaves se encontraram, mãos em mãos trémulas, cabelos entrelaçados. Foi apenas aí que realmente compreendi a força maior que me ensinaram. Como se uma mão me empurra-se contra ela e dissesse “vive a tua verdade” ao meu ouvido.


A rapariga que beijei foi retirada do Colégio imediatamente e eu levei com as culpas de sujar a sua reputação. Ela também gostava de mim. Não importava quantas vezes o dissesse, não era suficiente. Ninguém ouvia. Sentia no meu coração que era amor, que era aquilo de que estive à espera tanto tempo - e todas à minha volta diziam que esse amor não era um amor que pudesse sentir. Estava a imaginar coisas. Repetiam, palavras tilintantes. Só existe um amor. 


Acendo o candeeiro cinzento. A lâmpada está quase fundida. O brilho treme, a luz presa no vidro numa linha amarela ténue. A manta é crespa, os meus dedos encolhem-se ao tocar nos fios gastos. Não aquece. Amanhã vou acordar de manhã e ter o meu castigo. Não chego a acordar. É impossível acordar se não se chega a dormir. Os vultos brancos e negros mexem os lábios. Não consigo ouvir o que dizem. Apenas uma palavra ecoa pela minha cabeça:


Desilusão.


Continua a fazer ricochete nas paredes da minha mente até descer à minha garganta. Ocupa todo o espaço enquanto desce, aperta, bate, não me deixa respirar. Soluço. Desce até ao meu estômago, mergulhando até ao fundo, e tudo quer vir ao de cima. Estou de joelhos, olho para cima para não vomitar. O ponteiro indica que já passaram cinco horas desde que as Irmãs me mandaram para a sala de confissão rezar. A madeira dura está lascada e entra pela pele dos joelhos como espinhos. A sensação de formigueiro começa a tomar os meus braços. Primeiro nos cotovelos, a subir, até chegar às mãos.


O sino toca.


Sete badaladas.


Por favor, sejam sete badaladas.


Cada bater no bronze brilhante ecoa pela sala. O meu coração bate tão rápido que creio que vai escapar. Cinco. Bato com os dedos nos meus punhos. Seis. Dobro o pescoço para o lado e sustenho a respiração. Sete. Deixo-me cair. Respiro fundo por um momento, posso ser humana novamente. Quando me viro de costas, lá está ela. Os seus olhos azuis observam-me através do sobrolho, cruz prateada nas mãos. Uma lágrima transparente cai sob tinta lascada, sempre fixa em bochechas pintadas. Toco no véu branco. Gostava que a minha manta fosse este tipo de tecido, suave e leve. Ou um vestido. Nunca irei vestir um vestido branco assim. Já me disseram que seria uma noiva muito cobiçada, e é exatamente por essa razão que devo dedicar o meu amor a Deus, e não a uma pessoa. Passar a vida inteira aqui, a servi-lo.


Penso em levar o véu comigo. Não sinto as pernas, como se não estivessem lá. 


Saio da sala para mostrar o meu sacrifício às Irmãs. Elas não me olham, nem estão à minha espera. Estão todas à volta de outra rapariga. É baixinha, de cabelo castanho quase preto. O homem, que suponho ser pai dela, abana a bengala enquanto grita palavras num sotaque demasiado forte para eu perceber. Leva uma mulher de preto com a cara escondida pelo braço apertado em punho. Deixam a filha para trás, como muitas são aqui deixadas para o seu bem. Eu não.  Eu não fui dada a oportunidade de ficar cabisbaixa enquanto os meus pais partiam. Nunca os vi partir de todo, e mesmo se tivesse visto, era um bebé. Ela olha para mim de lado, ainda a fingir vergonha. Sorri. A Irmã Januária aponta para mim e todas as outras acenam com a cabeça. 


A minha nova colega de quarto. Quando me olhou de alto a baixo, fiquei logo a saber que era como eu. Não somos feitas para um sítio como este. 


Senta-se encolhida na cama ao lado da minha, arranca as linhas da sweater vermelha do uniforme do Colégio. Eu não a uso, acho demasiado quente, até no inverno. Prefiro só a camisa branca, se necessário um casaco de lã que a Irmã Januária me fez com a minha cor favorita: azul. Vermelho é uma cor tão intensa, tão… irritante. Olha para mim através de uma franja mal cortada, como uma cria de veado magoada.


        - Se vais ser assim tão calada como colega de quarto, vai ser o mesmo que não ter nenhuma.


     - Desculpa - arranca outro pedaço de lã - sou a Samuela. Prazer. - Levanta-se como um soldado e amachuca a saia preta, olhos fixos no chão.


      - Não te vou morder, Samuela - levanto-me também, aproximando-me da Bambi abandonada - hmmm, vou chamar-te Samie. Samuela é muito piroso. Podes chamar-me Dália. Ou sua realeza, se vais continuar a olhar para o chão cada vez que falas comigo.


Tenta conter um riso, fixa os lábios um no outro para os cantos da boca não subirem. O queixo sobe lentamente, analisa a minha posição. As bochechas rechonchudas bege ficam coradas quando finalmente me olha nos olhos. Sorrio. Vou continuar a ser mázinha. Para a testar. Ver se vai a chorar para as saias negras das Irmãs, ou, se calhar, se ri e solta uma personalidade que está a esconder na gola da sweater. 

    

    - Dália. Sua Realeza. Okay. - é de poucas palavras. Não desgosto, mas espero que consiga ter conversas mais interessantes.  É um começo, não me posso queixar. As paredes são ligeiramente menos faladoras. 


O silêncio e olhares preenchem o quarto até chegar a noite. As minhas pernas ainda estão a recuperar a sensação, marcas aroxeadas a manchar os joelhos e tornozelos. A Samie abre a boca por momentos para fazer uma pergunta sobre elas, mas rapidamente a fecha de novo. Ainda bem. Não tem nada a ver com isso, e quanto menos souber, melhor. Atiro-me para a manta áspera e tiro o telemóvel da gaveta. Temos de os deixar nos quartos durante as aulas, e a rede do Colégio não dá para pesquisar quase nada. Às vezes sento-me para lá da floresta que nos rodeia, onde está a paragem de autocarros e apanho a Wi-fi das camionetas que param. Já considerei em entrar numa e nunca mais voltar. Várias vezes. Mas sei que só acabaria mais uma vez a rezar até às sete badaladas. A única coisa que consigo fazer é aproveitar as duas linhas de esperança para descarregar histórias escritas por outras raparigas da minha idade, longe deste lugar. Histórias sobre mulheres independentes, que são levadas da sua vida aborrecida por seres fantásticos sedutores, que dançam a noite toda e, no fim, salvam-se a si mesmas da vida que foi escolhida para elas, vivendo a sua verdade. 


Abro o telemóvel, olho para a fotografia de fundo com as violetas no limite da floresta. São duas violetas pequenas, sozinhas, mas que persistem no meio da relva verde e pinheiros altos. Não há nada de especial, não quero arriscar a Irmã Arlete um dia cuscar o que tenho no telemóvel e encontrar redes sociais que considera “impuras”. Vou à minha pasta de transferências e fixo o olhar nas letras escuras em fundo creme. Consigo ler quase dois parágrafos até ser interrompida.

    

    - Hum… Dália, quer dizer, sua realeza - tento não me desatar a rir, não pensei que ela me fosse chamar assim a sério - posso deixar a minha luz acesa? … Tenho medo do escuro. 


O meu sobrolho levanta. O meu primeiro pensamento é “com esta idade?” mas abano a cabeça para o afugentar. Medo é medo. Nunca se sabe o que pode surgir do escuro. Olho de volta para os parágrafos no telemóvel. Todas temos os nossos confortos. 


    - Está bem, mas podes meter-lhe um pano ou algo assim por cima? Se for muito intensa, eu não durmo. 


Corre, à procura de uma sweater na sua mala de viagem o mais rápido possível, e atira-a tão freneticamente que quase tropeça a caminho. Olho para ela de lado. A cara rechonchuda é fofinha, apetece dar beijinhos. Calma…O quê? Que pensamento foi este? Nunca lhe posso dizer isso. Abano a cabeça para afastar a ideia como uma mosca chata que me sobrevoa. 


A luz do candeeiro fica abafada sob a lã vermelha, um pequeno por-do-sol no nosso quarto. Levanto-me da cama e puxo a camisa branca pela minha cabeça, o meu cabelo emaranhado nos botões de madeira. Oiço um guincho e pergunto-me se a Samie apanhou um rato perdido, mas não, foi ela. Está enrolada nas mantas ásperas com os olhos tapados pelas mãos enroladas nas pontas do tecido. 


    - Sabes que vamos viver juntas aqui certo? Sei que sou bonita, mas é melhor habituares-te. E vestires um pijama também. - mantenho o queixo erguido e pego nas pontas do cabelo, colocando-as a esconder as minhas bochechas coradas. Todos os Santos me ajudem. Ela é fofinha. 


Levanta-se com a manta por cima da cara, como um fantasma. Tira a sua roupa numa dança atrapalhada de braços e pernas e coloca uma t-shirt e calças com estampas de gatos. Entretanto, já coloquei a minha camisa de noite plana. Olhamos uma para a outra por um segundo, à procura de algo para dizer ou fazer. Um grilo canta, um ritmo agudo cheio de uma solidão que quer ser preenchida. Olhamos para a janela. A mata que segue por quilómetros à volta do Colégio lembra-nos da realidade. Neste momento, e enquanto estivermos aqui, só nos temos uma à outra.


Dormimos viradas para a parede. 


Acordamos com o toque do sino da capela do Colégio. A luz o candeeiro já mal se nota com o sol do amanhecer. Uma cabeça despenteada de cabelos escuros levanta-se, tonta. Passo a mão pelos meus fios de cabelo também. Samie dá um salto quando me vê, como se se tivesse esquecido que foi trazida para este Colégio. Um tom rosado cobre a sua cara. 

 

        - Vê lá, até parece que tenho um olho na testa, com o salto que deste. Bom dia para ti também. 


        - Bom dia - encolhe-se num sussurro. 


Tento enrolar o meu cabelo de forma bonita. Sempre achei cabelo longo incómodo. Quando era mais pequena pedi à Irmã Januária para o cortar curtinho, mas a Arlete parou-a antes da tesoura lhe tocar. Disse que me faria “parecer um menino” e que eu podia ficar “com as ideias erradas”. Desde aí que nem pelos ombros mo cortam. Remexo nos fios para tentar encontrar uma forma deles sentarem confortáveis no meu ombro, mas sem sucesso. A voz de ratinho faz-se ouvir pelo quarto.


        - Hum. Dália. Realeza. - olha para o chão.


        - Podes parar de me chamar realeza, estava a brincar contigo. 


        - Está bem… Dália. Queres ajuda? - abana um dedo curto na direção do meu cabelo. - Posso fazer-te uma trança. - Ela aproxima-se tentativamente de mim.


Mantenho o queixo erguido acima do olhar dela. Eu não preciso da ajuda dela. Conseguia passar o dia com o cabelo solto. Tenho de o ter longo, para dar o exemplo. Nunca precisei dele atado. Quer dizer…nunca ninguém ofereceu para o atar. Mordo os cantos das bochechas para evitar um sorriso ou o que o calor suba de novo à minha cara. Não respondo, antes que a voz me falhe. Apenas consinto com a cabeça.


Senta-se na minha cama atrás de mim. Para a timidez que demonstrou até agora, é bastante corajosa quando quer. Passa os dedos suaves pela minha nuca. Puxa cada cabelo gentilmente, apreciando a sensação dos fios dourados na ponta dos dedos. Divide o meu cabelo em três secções em silêncio, apenas a nossa respiração a harmonizar. Passa a mão por cada secção que faz como quem acarinha um animal magoado. Rapidamente começa a entrançar os cabelos, os seus dedos quentes passam pela minha pele ritmicamente, e rezo para não notar os pelos da nuca a levantar de nervosismo. Seguro a respiração, oiço apenas a dela, que perdeu o seu tom nervoso para tomar um de devoção. Acaba a trança com um elástico em mola, da cor do seu cabelo, que tinha no pulso. 


Viro-me para trás. Olhos nos olhos. Sinto-me uma obra de arte a ser admirada numa exposição, com olhos carinhosos a analisarem cada detalhe de todos os ângulos. Ambas desviamos o olhar para mais abaixo por um segundo. 


Não. Ainda não. 


        - Obrigada. - levanto o queixo de novo - vais passar a fazer isto todas as manhãs. 


Pelo sorriso que ilumina o quarto, sei que o vai fazer sem qualquer discussão.


Passam-se meses de tranças matinais. Tornou-se um ritual nosso. O nosso monumento de palavras não faladas, longe dos olhares que gritam “pecado” ao toque suave de mãos e cabelos. Caminhamos juntas pelos corredores, eu à frente, ela atrás. Cuspo o insulto casual para evitar suspeitas. Nunca lhe digo a razão de a insultar. Ela nunca pergunta. Apenas segue, sempre leal. Guardo o instinto de franzir as sobrancelhas e perguntar “porquê?” apenas para mim. As outras estudantes e Irmãs sussurram, mas não sobre a nossa relação. Sobre o quão diferentes somos. O quão perfeita pareço ao pé dela. Perfeita demais. Beta, até algumas me chamam. Sem um cabelo fora do sítio, ao lado do cabelo escuro despenteado. Estou sentada abaixo da estátua do Colégio a ler no telemóvel num tempo livre. Ela está ao meu lado. 


        - Nunca percebi porque é que é uma estátua de um rapaz e uma rapariga. É um colégio feminino. 


Rio. Invejo-a. Não teve de crescer com as palavras deste colégio, desta estátua, dos seus livros, como um sino permanente. Não carrega esse peso. Olho para a figura feminina de baixo. Estende os braços para o céu. É parecida comigo. Pergunto-me se os seus braços tentam carregar o peso desta escola também. 

    

    - As Irmãs acreditam que o Nosso Pai colocou um homem e uma mulher neste mundo por uma razão. Opostos, mas uma reflexão do mesmo ser. Dois lados com nenhum espaço entre eles. A sua vida, para criar mais homens e mulheres, e ensiná-los a estender os seus braços ao céu para agradecer a Deus por uma existência simples. 


    - Tu acreditas nisso? - inclina-se para a frente à procura do meu olhar. Parece um cachorrinho inquisitivo. Pauso.


    - Eu acredito apenas neste momento. - encolho os ombros - E neste momento, só tu e eu é que existimos. 


Encontro os olhos castanhos à minha frente. Fitamos o olhar uma da outra. Deixamos as palavras respirar. 


Alguém atrás de nós clareia a garganta. É a Irmã Januária. As suas mãos são cheias de vida contra o tecido branco que surge entre o meio do hábito escuro. Segura-as uma na outra com hesitação, dois papéis entre os seus dedos. 


    - As meninas saíram tão depressa da aula, que não ouviram a Irmã dizer que era necessário receber a autorização para a visita de estudo. - passa uma cópia do mesmo documento a mim e à Samie. - Samuela, o teu pai deve assinar o papel este fim de semana, tenta apanhá-lo com bom humor - pisca-lhe o olho. Vira um olhar cheio de pena na minha direção - Dália, terás de pedir à Irmã tua guardiã - suspira - já sabes que vais ter a responsabilidade de ser um exemplo.


Resisto ao instinto de olhar para baixo. Não preciso da pena dela, mas não quer dizer que também não tenha pena de mim. Levanto-me antes de poder sentir o olhar da Samie e da Irmã a queimar-me a pele. Nem uma ida ao cinema, que é suposto ser uma atividade divertida para nós, eu posso aproveitar. Tenho de ser sempre a mais calada, a mais inteligente, a mais bonita, a mais pura. Estar sempre a ditar as palavras que me ensinaram desde pequena, ser amiga de todas e ignorar o que dizem sobre mim. Não há um momento para respirar, um momento para me zangar. A única forma de ter uma pausa de tudo o que querem de mim é fazer algo tão mau diante dos olhos delas, que me mandam sozinha para a sala da Santa Maria. Ultimamente, tudo parece ser uma desculpa para me mandar para lá.


Estou farta. 


É de noite. Desfaço a trança na cama, a Samie a tentar não olhar para mim. Apesar dela ser um desastre andante e ter mais ansiedade no mindinho que eu no corpo todo, confio nela. Confio que todas as manhãs, está aqui para entrançar o meu cabelo sem se queixar. Confio que apoia tudo o que faço e me ajudaria em qualquer coisa que eu precisasse. Acima de tudo, confio que quer estar aqui tanto como eu quero. 


Aproximo-me da cama dela, o que a faz recolher-se, os olhos castanhos e profundos a olhar para cima, que lhe dá um aspeto de cão abandonado. Abre a boca e quase sussurra uma pergunta que fica presa no lábio trémulo. Respondo, mesmo assim.


        - Vamos fugir. Durante o cinema. É o momento perfeito. - ela abre a boca mais um pouco ainda com as palavras presas na garganta, mas eu não preciso que ela fale - Está escuro, as Irmãs também vão estar concentradas a ver o filme. Só precisamos de garantir que ficamos com lugares ao canto e podemos sair da sala de cinema sem ninguém notar.


Ela fecha a boca. Tenho medo que vá dizer que não pode, por causa dos seus pais. Nunca fala deles e não tenho a certeza se isso é normal ou se não sente assim tanta conexão a eles. Não tenho a certeza se ela compreende a seriedade do que estou a sugerir, mas espero que sim.


Seja como for, ela segura a minha mão e abana a cabeça. 


No dia do cinema tudo é caos. As Irmãs tentam que não olhemos para outros posters que não do filme sobre a Bíblia a que nos trouxeram, com um galã de novela português que pessoalmente acho contraditório mostrar a um grupo de raparigas hormonais se querem manter a mensagem de pureza e modéstia. Apesar de tentarem muito, eu e a Samie vemos um póster preto e vermelho: “À Luz da Meia Noite”. Os dois atores americanos muito pálidos, abraçados um contra o outro com rosas salpicadas de sangue à sua volta. Olhamos uma para a outra e sorrimos. Sabemos para onde vamos fugir.


Tudo corre de acordo com o plano. Sinto a mão da Samie a tremer na minha enquanto a puxo pela sala escura, pelos corredores do cinema até uma nova sala em que já se ouve diálogo dramático sussurrado entre os personagens. Sentamo-nos na última fila de todas. Mal conseguimos ver o ecrã a esta distância, a sala cheia de raparigas da nossa idade que não têm de se preocupar com esgueirar-se para filmes assim. Algumas com namorados. Suspiro, alto o suficiente para a Samie ouvir, mas não para ecoar pela sala. Ela segura-me na mão.


É bem possível que este seja o meu novo filme favorito. É exatamente como as histórias que leio no telemóvel. O rapaz principal é giro, bem mais do que o galã do filme que as Irmãs queriam que víssemos. Tem os olhos claros e as maçãs do rosto definidas. A rapariga que está a apaixonar-se por ele é igualmente bonita, com lábios carnudos e madeixas vermelhas. Não sei com qual deles mais gostava de ficar. Não sei qual deles mais desejo ser.


Viro-me para o lado para sussurrar os meus pensamentos sobre o filme à Samie, e deparo-me com a cara dela já a olhar para mim. Não desvia o olhar quando ficamos nariz a nariz. 


     - Não estavas a ver o filme?


    - Não faz muito o meu tipo de história. Acho que tu és mais bonita que qualquer atriz que possa aparecer no ecrã. - aperta a minha mão, que está a descansar no braço que divide as nossas cadeiras. 


Afasto a minha cara um pouco, sustenho a respiração por instinto. De onde vem isto tudo? Onde foi a minha colega de quarto ansiosa que ainda tapa a cara com a sweater de cada vez que lhe toco no ombro? Nunca esperaria que a Samie conseguisse ser tão… direta. Aproxima-se mais de mim. Não sei o que fazer. Nunca achei que fosse eu estar nesta posição. Eu é que tive a iniciativa antes, com a colega de quarto anterior. Esperava que fosse o mesmo com a Samie. Não agora. Num futuro distante. Um em que não seria castigada por isso. Mesmo assim…


Fico parada. Ela aproxima-se e eu fico parada. Ainda sem respirar. O meu coração é capaz de cair através do meu corpo e misturar-se com as pipocas perdidas no chão. Fecho os olhos e espero que o filme acabe neste momento. Em vez da música de créditos - ou lábios a tocar nos meus - uma luz intensa e um berro. Abro os olhos e lá está a Irmã Arlete - ou, como eu a conheço, a minha mãe adotiva, apesar dela nunca me deixar chamá-la assim. A que assina os meus papéis, a que me dá um teto e tem a minha guarda legal perante o governo. A Irmã Januária está logo atrás com o seu olhar piedoso e ao lado dela um adolescente com uma lanterna e uma farda do cinema.  Arlete grita com os seus discursos típicos, atira uns comentários sobre levar a Samie para maus caminhos, chama-me ingrata, de mimada, de rebelde e de tudo o que se lembra no momento. A Irmã Januária agarra-lhe no braço e a mão pálida e enrugada afasta a mais castanha e suave. A minha guardiã deixa uma última frase a ecoar-me na mente antes de deixar-nos no cuidado da mulher às suas ordens. 


        - Tu não foste uma prenda de Deus, foste uma artimanha do Diabo. Devia ter-te deixado ao frio onde te encontrei para voltares para o inferno com ele. 


Não processo o que acontece a seguir. Não oiço o queixume das pessoas no cinema que fingem querer saber. Ela já tinha sido má, sim. Já me tinha chamado tudo o que podia chamar. Mas dizer que eu devia ter morrido em bebé? É cruel. Não é o que tentam ensinar naquela prisão a que chamam de colégio. Não é uma casa, não é como tratar alguém que viste crescer, não é como tratas alguém de quem gostas. Isso, eu sei. Engulo os soluços e com eles vão as lágrimas que não chegam a cair. Somos levadas de volta e sei que não haverá uma saída assim para nenhuma estudante assim tão cedo. Ou pelo menos, até eu parar de existir nos corredores do colégio.


Claro que acabo na sala da Santa Maria. Os meus joelhos têm uma dor familiar, tão familiar que já a ignoro. A Samie está a tentar não chorar ao meu lado, mas as mãos tremem, mais do que o normal. Viro-me para ela por um segundo, mas sem saber o que dizer, olho de novo para a cruz no centro da parede, o olhar choroso das lágrimas de silicone a queimar-me a nuca. Como que a sentir que lhe queria dizer alguma coisa, a Samie vira-se para mim.


        - Foi um bom encontro, pelo menos. - segura a minha mão como no cinema e força o sorriso. Baixo as minhas em posição de reza, batendo a dela contra a madeira do banco de Igreja.


    - Mas tu estás estúpida? Queres piorar isto tudo? - digo num sussurro gritado - Encontro? Eu queria fugir, Samuela. - ela torce o nariz ao som do seu primeiro nome completo.


    - Sim, para ver outro filme comigo - quero levantar a mão à implicação.


    - Ver outro filme? Contigo? Fugir para fora daqui! Para outra vida! Achas que quero passar as minhas semanas nesta sala até as minhas pernas já não funcionarem? Tu sabes bem porque nos meteram aqui. Sabes bem que não podemos mudar isso. Sabes bem que não interessa o que nós façamos, vão sempre prender-nos de volta aqui. 


Inclina a cabeça. Abre a boca para responder, mas fecha-a logo de seguida.

Ela não sabe. 


    - Nunca devia ter falado contigo. Isto é tudo culpa tua.  - não acredito no que estou a dizer, mas digo na mesma. Todos à minha volta o fazem. - Eu podia ter voltado a ir por um bom caminho! Faltava um ano e legalmente não teriam poder sobre mim… mas tu, e as tuas tranças, e as tuas mãos, e os teus olhares de cachorrinho perdido. És pior que eu, Samie! Eu… eu sou uma vítima. Tu é que devias passar o resto da vida aqui. Mas vou ser eu, porque eu sou o exemplo. Porque sou eu que elas podem castigar sempre que quiserem. 


Enterro a cabeça nos braços, as minhas mãos ainda a rezar, agora por cima da minha nuca. O sino familiar ressoa pela sala. Deixo os soluços saírem entre o bater no bronze. 


Quatro badaladas. Soluço. 


Cinco badaladas. Soluço. 


Seis badaladas. Porta. 


A porta abre-se com um ranger. Conheço quem entra pelos passos. Cuidadosos, na ponta do pé. Irmã Januária. Ela não diz nada, apenas se aproxima de nós. Olho para o que ela faz através do meu cotovelo. Toca-nos nos ombros.

      

 - Eu… - começa, já com um suspiro - É castigo suficiente, meninas - olha para mim e franze as sobrancelhas por um segundo em preocupação, mas rapidamente substitui essa expressão pelo seu olhar de pena como se estivesse programado nela. - e se alguma vez quiserem falar acerca… do vosso pecado - as pontas da boca tremem - eu estou aqui para vos  ouvir. 


Samie olha para cima e sorri, esperança cobre os olhos castanhos que refletem os verdes da Irmã Januária. Eu não partilho do mesmo sentimento. Olho para a Santa atrás de nós. Não sou como Samie. Não sou como Januária. Sou como Ela.


O som do sino não sai da minha cabeça. O tom muda, mas fica no meu ouvido. Estou num quarto diferente. Fomos separadas por segurança. Num quarto vazio, o sino ecoa ainda mais. Já não é o tom forte de bater em bronze. É mais fino, mais pequeno. Mais rápido. 


Vem na minha direção. Quando chega, toma todos os meus sentidos. Os meus ouvidos, a minha visão. Os meus passos. Ando até à janela sem me aperceber. Não há nada do outro lado. Apenas escuro. Não vejo a estátua. Não vejo a mata. Não vejo o horizonte. Não parece muito profundo. Tinha quase a certeza que estava no segundo andar. Mas agora, não pareço estar assim não alto. Podia saltar e fugir daqui. A Irmã Arlete ficaria feliz por se livrar de mim. A Samie podia continuar aqui durante uns anos e um dia arranjar uma namorada que fosse melhor para ela. Podia saltar.


Cabelos saem da minha trança à medida que caio pelo ar. Apercebo-me que os meus olhos enganaram-me e estava bem mais alto do que achava. Quero gritar, mas nem sei se o faço porque só consigo ouvir os sinos que continuam a tocar. Fecho os olhos. Espero só pelo momento em que chegue ao chão, mas esse momento nunca chega. Em vez disso, dois braços seguram no meu corpo, um nas minhas costas e o outro nas minhas pernas. Abro os olhos.


À minha volta ainda é só escuridão, mas há uma nova figura entre ela. A cara parece uma mistura do galã do filme que nos levaram a ver e o ator do filme para que nos esgueirámos. As maçãs do rosto são definidas, a pele pálida, com uma barba escura e rasteira bem cuidada, cabelos ondulados longos que caiem sobre mim e olhos que sorriem. Os olhos mais brilhantes e amarelos que já vi. Amarelos?


Pousa-me no chão e faz uma vénia exagerada, os cabelos a flutuar para cima quando se ergue de novo. Tem a sua mão estendida e consigo ver que as pontas dos dedos são pontiagudas, pintadas com tinta preta. A roupa branca está cheia de folhos e uma capa que flutua atrás de si como se fossem asas. Já não oiço os sinos. O único som é a voz grave e poderosa do homem à minha frente. Apresenta-se. Parion. Convida-me a ir com ele. Aceito. Quando viramos costas, vejo as janelas do Colégio a acendem e várias alunas e Irmãs a olhar. 


Nunca mais vou voltar para aqui.


Passamos a noite a dançar. Não sei quando aconteceu, mas uso um vestido branco que combina com a roupa dele. Ele segura nas minhas mãos com gentileza e olha-me com curiosidade. Falamos enquanto os nossos pés se mexem. Nunca aprendi esta dança, mas é como se sempre a soubesse. Não sei do que falamos. Sei que a minha boca se mexe, e a dele se mexe de volta, mas o som que sai delas é um mistério. Só oiço na minha mente “Estou salva. Estou livre”.


Ele inclina-se mais perto de mim. Quando acho que vai parar na minha cara, passa através dela, no meu ouvido. O seu sussurro é diferente da sua voz, ecoa como o sino da Igreja.


        - Nós vamos mudar o mundo.


(Este conto faz parte da saga Dia de Fataí da autoria de M. S. Rosa. Edição por A. Sofia Lopes. Revisão por Samuel Maia. Capa por Natacha Banza. Todos os direitos reservados.)

Comentários

  1. Maravilhoso!... Uma escrita intensa e dura que surge como equilíbrio no meio da devastação e da tristeza. Tudo o que escreves vibra e arranha o limite.

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